A série Titãs e o conflito do público com adaptações

Por Cecília Fernandes - terça-feira, janeiro 22, 2019



O ano de 2019 teve início com novas produções originais no cinema e em plataformas de streaming como a Netflix. Entre elas a série Titãs com os jovens heróis da DC Comics, baseada nos quadrinhos originais.

A primeira temporada, de onze episódios, chegou à plataforma no dia 11 de janeiro, tendo sua construção baseada nos quadrinhos dos anos 80 e não na animação popular dos Jovens Titãs, transmitida pelo canal Cartoon Network entre 2003 e 2006.  


Entretanto, como nem tudo são flores e é impossível agradar a todo público, a série possui seus pontos positivos e negativos. Além disso, houveram críticas específicas à adaptação do elenco, assunto que que abordarei mais profundamente neste texto.

No geral, Titãs e sua repercussão dizem muito mais a respeito do público consumidor de conteúdos de super-heróis, assim como suas respectivas adaptações às telas, do que sobre a produção de grandes empresas como a Netflix.


Observação importante: deixo claro desde já que não sou a maior geek ou consumidora de quadrinhos, mas li uma boa dose de críticas e artigos a respeito da série, dos quadrinhos originais e do processo de criação dos Titãs para produzir essa postagem, que na verdade utiliza da repercussão da série para tratar de um assunto mais importante e vivenciado por mim.

Enredo da série

A série apresenta como protagonista Rachel Roth (Teagan Croft), uma adolescente de dezesseis anos que apresenta poderes demoníacos que aterrorizam e afastam todos ao seu redor, inclusive sua mãe Melissa. Rachel se tornará Ravena, apesar da personagem se encontrar em fase de desenvolvimento e descoberta dos seus poderes na primeira temporada. Na introdução da história, a garota encontra-se confusa e com medo de suas próprias capacidades, sendo forçada a lidar com a perseguição de uma suposta seita que acredita que ela é o portal de acesso de uma entidade poderosa ao mundo dos humanos.

A perseguição acaba levando a protagonista a ir de encontro com Dick Greyson (Brendin Twhaites), detetive da polícia local que aparece nos pesadelos constantes de Rachel, todos sobre um acidente circense real. O episódio retratado nos pesadelos foi responsável pela morte dos pais de Dick e o início de sua jornada como pupilo de Bruce Wayne, o que o levou a se tornar Robin consequentemente.

Em outra linha do mesmo enredo, a série retrata como a perseguição une Rachel a Kory Anders (Anna Diop). Kory Anders representa a personagem Estelar dos quadrinhos originais que na série apresenta-se como uma mulher que perdeu toda a sua memória, mas lembra-se de estar a procura de Rachel por motivos revelados no desenrolar da narrativa.

Mutano (Ryan Potter), que na série também é um adolescente, entra no caminho das duas durante as buscas de Kory por respostas e completa o quarteto. Enquanto tentam proteger a protagonista da trama, a jornada individual dos personagens faz com que encontrem respostas e novos desafios.
As três Ravenas: da série Titãs, produzida pela Netflix, dos quadrinhos dos anos 80 e da animação Jovens Titãs

Observações pessoais

A série apresenta os lados mais sombrios de personagens famosos, como o Robin e o próprio Batman, retratado superficialmente como elemento da história de Dick. Os integrantes do grupo e suas relações são desenvolvidas pelo ponto de vista de seus defeitos, falhas e dificuldades pessoais. Esse processo resultou no crescimento notável de cada personagem, pois o formato da narrativa atinge os relacionamentos, desde as amizades até os envolvimentos amorosos.
Apesar disso, a protagonista em si tende a ser irritante e cansativa, mais do que atrativa e intensa como os leitores do quadrinho esperavam. Rachel Roth é o ponto de ligação para o desenrolar do enredo, o aparecimento de novos personagens e a construção dos Titãs, mas é uma personagem rasa definida basicamente pelo medo constante em relação ao seu poder e a personalidade desequilibrada.

Acredito que haja potencial para a personagem nas próximas temporadas, tendo em vista o mínimo crescimento que teve na temporada. O mesmo pode acontecer para Mutano, que foi mais um alívio cômico do que um personagem de peso, aparecendo como apoio emocional, quebra de clima e com inserções sem contextos esclarecidos no enredo.

Adaptação da personagem Estelar

A questão principal que desejo abordar nesse texto é a respeito da repercussão que a série teve, desde o lançamento do trailer com os personagens oficiais. Em específico sobre os comentários e críticas do público pelo fato da Estelar ser representada por uma atriz negra, diferente do que o esperado por um grupo acostumado com a personagem embranquecida na animação Jovens Titãs. A repercussão tornou-se um caso associado ao racismo embutido na mente dos telespectadores, chegando ao ponto da atriz Anna Diop desativar os comentários no Instagram devido aos ataques por sua participação na série.
A Estelar da animação Jovens Titãs e a Estelar dos quadrinhos dos anos 80
Não há menções específicas que declaram a Estelar como uma mulher negra, até porque nos quadrinhos ela é uma alienígena alaranjada sem etnia definida, enviada à Terra para evitar a chegada do vilão Trigon ao seu próprio planeta, protegendo-o da iminente destruição. Entretanto, a personagem escrita por Marv Wolfman e George Péres foi inspirada em mulheres negras, apresentando traços como cabelos crespos, seus lábios grossos e biótipo semelhante ao da própria Anna Diop.
Não me atenho neste texto sobre a beleza da personagem, minha preferência pessoal para a personagem ou a caracterização da Estelar, que também tem sido criticada. A intenção dessa postagem é abordar a dificuldade do público em aceitar personagens fora do padrão esperado, do padrão vivenciado por pessoas acostumadas a núcleos majoritariamente brancos, ainda que um pouco diversificados pela mudança gradativa nas tendências sociais. Os comentários que li, não somente sexualizam a personagem Estelar com fotografias de cosplays beirando a pornografia, como ofendem a própria atriz pelas roupas que utiliza na série, associando-a a prostitutas e nomes péssimos que não cabem aqui, mas a atacam pela cor da sua pele.



Além de desconsiderar a excelente atuação de uma personagem que para mim, e para parte dos críticos, desenvolveu sua história e a relação com os demais personagens de maneira natural, equilibrou a intensidade de sua personalidade com seus sentimentos, vivenciou seus traumas e questões pessoais como instrumentos de construção da nova identidade. Os comentários sobre a adaptação da personagem são muito mais sobre racismo do que crítica à adaptação em si.
Paralelo feito no Twitter entre a personagem e a atriz na série. (via)


Adaptações às telas de cinema

A indústria do cinema adaptou personagens alienígenas à etnia negra sem transformar a tonalidade da pele destes, como foi o caso da Gamora, representada por Zoe Saldana com a pele verde e traços negros. Entretanto, como fã de super-heróis e consumidora assídua de adaptações ao cinema ou plataformas de série, acredito que ater-se aos poderes, à história, às características pessoais, ao engajamento com personagens e ao enredo é muito mais importante do que distribuir investimentos de bons efeitos especiais para caracterizar uma atriz na tonalidade dourado/alaranjado, por exemplo.

A personagem original dos quadrinhos apresenta traços negros inspirados em mulheres afrodescendentes. O público que consome esses quadrinhos não manifestou a mesma opinião, reclamação ou ataques quando a animação infanto-juvenil apresentou uma adolescente extremamente embranquecida, magra e com um cabelo rosa, o que reforça a opinião de que essa revolta é seletiva e puramente baseada em etnia. Não trato essa caracterização na série pelo ponto de vista econômico. O foco e o argumento em questão não é que seria mais caro colocar a atriz com pele laranja, mas que o problema e a negação da atriz Anna Diop como Estelar representa um problema muito maior, de origem social e cultural que precisa ser discutido.

Representatividade negra x racismo

O racismo e a falta de representatividade negra no cinema estão correlacionados. Uma pesquisa feita pela editora Lee and Low Books analisou que dos cem maiores filmes de bilheteria nos Estados Unidos, apenas oito apresentam protagonistas negros. E tem mais, desses oito protagonistas não-brancos, seis deles são representados pelo mesmo ator, o Will Smith.

Caso este dado não seja suficientemente trágico para compreensão da dimensão do problema, a Agência Nacional do Cinema (ANCINE) analisou 142 longa-metragens brasileiras no ano de 2016 e constatou que somente 2,1% foram dirigidos por homens negros, não havendo nenhum dirigido por uma mulher negra. Neste universo pesquisado, entre o gênero de filmes de ficção, 42,3% do conteúdo produzido não apresenta nenhum negro no elenco principal, o que demonstra a decadência do cinema nacional em um país em que os pretos e pardos juntos representam 55,4% da população brasileira, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) em 2017.

Caso da peça "Harry Potter and the Cursed Child"

O caso de Anna Diop não é o primeiro, e infelizmente não é o último. Em 2016 a peça "Harry Potter and the Cursed Child" recebeu duras críticas e ataques racistas devido à escolha da atriz negra Noma Dumezweni para representar Hermione Granger, considerando que nos filmes, Emma Watson atuou no papel durante toda a saga.

A situação gerou revolta nos fãs da saga, queixando-se que a peça não conectava-se aos livros, entretanto, a própria JK Rowling afirmou nunca ter estabelecido cor ou etnia à personagem, mesmo escrevendo em Prisioneiro de Azkaban, referindo-se a Hermione: "sua cara branca aparecia atrás de uma árvore", o que ela explicou estar relacionado a um susto que a personagem teve. Nesse caso, Rowling, considerada a maior escritora desta geração, declarou apoio e entusiasmo quanto à escolha da atriz para representar a personagem, colocando um ponto final na repercussão negativa ao espetáculo e à carreira da atriz.
Emma Watson abraçando a atriz Noma Dumezweni após a peça (via)
A representatividade negra no cinema tem aumentado gradativamente, com seriados como Titãs e filmes como Pantera Negra, Homem Aranha no Aranhaverso e na própria saga Star Wars. A relevância dessa representatividade relaciona-se com o combate ao racismo, além de permitir a identificação de pessoas negras com o conteúdo que consomem.
A presença de protagonistas negros nos cinemas, propagandas e conteúdos televisivos tem o potencial de criar reflexão nos telespectadores. Essa presença, a ocupação de indivíduos apagados socialmente, apresenta como consequência a transformação, ainda que insuficiente e extremamente lenta, dos valores sociais e culturais enraizados em cada um de nós.


Para exemplificar isso e concluir o texto, apresento o caso do menino que após assistir Star Wars VII: O Último Jedi comprou o boneco do protagonista Finn, por pura assimilação com a sua própria aparência. Representatividade importa. É um instrumento de combate ao preconceito racial, sexual, de gênero e outras formas de violência contra grupos invisibilizados. É necessária, transformadora e relevante, independente se adotada com uma personagem alienígena, uma feiticeira de cabelos cacheados em uma escola de bruxos ou com um rebelde da Revolução.

Fontes
Levantamento ANCINE


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